Entrevista com Caroline Murta e sua Alice
Tive a mágica oportunidade de entrevistar a ilustradora Caroline Murta, cujas visões macabramente alicedélicas dão uma nova dimensão ao mundo de Alice. Desse encontro nasceu uma resenha, pronta para ganhar vida nas páginas da revista KL, da Sociedade Lewis Carroll da América do Norte. Convido você a mergulhar conosco nessa toca de coelho, onde o familiar encontra o sinistro e o maravilhamento caminha lado a lado com o estranho. Parabéns pelo trabalho cuidadoso e criativo da editora Wish.
Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho.
Ilustrado por Caroline Murta.
Wish, 2024. ISBN 9786588218969.
1 – Quem é você?
Ah, esse é o grande enigma! Não poderia começar essa resposta de um jeito diferente, não apenas como uma forma de referenciar a Alice, mas principalmente, porque eu nunca encontrei uma resposta concreta para essa pergunta. Apesar disso, gosto de recorrer a minha característica mais permanente que identifico desde a infância, e ao fazer isso encontro uma alma que é, acima de tudo, sensível, curiosa e contemplativa. Uma criatura que, mesmo não sendo mais uma criança, ainda não se acostumou com o mundo e como a realidade se apresenta. Carrego comigo um sentimento persistente de estranhamento, tanto do mundo quanto de mim mesma, e isso tem permitido com que eu frequentemente me assombre e me deslumbre com a vida. Profissionalmente, sou uma artista e ilustradora independente que se dedica a explorar o lado sombrio das coisas.
2 – Como você descreveria seu estilo, assim como seus gostos e obsessões temáticas?
O meu estilo de arte é bastante caracterizado pelo uso de alto contrastes em preto e branco, a partir do quais gosto de explorar a potencialidade dramática dos cenários e personagens, combinando elementos do horror e do grotesco, com figuras frequentemente em estado de pavor, melancolia, e/ou estranhamento perante o que estão vendo ou experienciando. Minhas principais influências vem do imaginário Gótico Vitoriano, da estética Art Nouveau e do Expressionismo, mas não se limitam a isso. Gosto muito desse retorno a uma estética do passado, como um bebê fantasmagórico da era vitoriana que ressurge no presente, não para assombrar, mas que acaba sendo assombrado pelo que vê. Sem dúvidas, o tema mais recorrente que posso chamar de “obsessão temática”, sem exageros, é o tema da morte e do luto, que além de serem um marco inicial na minha vida, se fizeram presentes em toda a minha trajetória artística. No entanto, hoje percebo que a morte é na verdade uma espécie de subtema dentro de um espectro maior, que fala do encontro com o “outro” e os desdobramentos desse contato, que percebo como os eixos centrais do meu trabalho.
3 – Quais artistas, na literatura, nas artes visuais, na música ou no cinema, mais te inspiram? São muitos!!!
Mas para não ficar muito extenso vou destacar apenas alguns que me inspiram mais diretamente. Na literatura, posso citar Mary Shelley, E. A. Poe, Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Dostoiévski, Augusto dos Anjos como exemplos. Na música, artistas como Anna Varney, Diamanda Gálas, Cocteau Twins, David Bowie são ótimas referências. Nas artes visuais, Aubrey Beardsley, Kate Kollwits, Goya, Takato Yamamoto, Leonora Carrington, Vânia Zouravliov, Francesca Woodman, dentre outros. No cinema, Ingmar Bermanm, David Lynch, Tim Burton, mais recentemente Coralie Fargeat, julia Ducournau, e em especial, filmes do Expressionismo alemão.
4 – O que Alice representa para você?
Alice é uma personagem cheia de nuances que, sem dúvidas, encontra diferentes ressonâncias com a criança interior que vive em muitos de nós. Pra mim as características mais marcantes e que também mais me cativam nessa personagem é a capacidade de admitir o absurdo, as diferenças, e não ter medo de, não só se desconstruir e se reinventar constantemente, como também desconstruir e reinventar, constantemente, todos os seus sistemas de crenças, com a leveza e resiliência, que talvez, só uma criança poderia ser capaz de sustentar.
5 – Quais outras visões de Alice, feitas por ilustradores, artistas e cineastas, mais te atraem?
Com certeza eu não conheço nem a metade de todas as versões de Alice que existem, mas dentre o pouco que conheço, o stopmotion de Jan Svankmajer sobre Alice é uma das minhas versões favoritas sobre o tema, gosto muito de como ele explora a essência nonsense e o surrealismo através do stopmotion. Também amo as fotografias monocromáticas de Vladimir Calvijo- Telepnev, as ilustrações de Gennady Kalinovsky, e as gravuras de Charles Robinson.
6 – Como você interpretou as obras através de suas imagens?
Vejo minhas ilustrações para Alice como uma ode a percepção do lado obscuro e bizarro que permeiam as obras, buscando capturar a essência sombria e inquietante, mas também interagindo de forma lúdica com as narrativas. Uma das coisas que mais me encantam no universo de Alice é que Lewis Carroll não parecia estar preocupado em dar um significado específico ou nos guiar para uma possível interpretação em suas obras, por isso elas são tão multifacetadas e ricas em significados quando buscamos interpreta-las. E creio que nisso reside muita grandeza, porque a incessante busca por sentido é algo característico da natureza humana. Parafraseando Susan Sontag, ao resumir a obra a uma interpretação tornamos a obra submissa, limitando sua capacidade de ir além. Gosto muito de como Sontag aborda isso em outro trecho “...o mérito dessas obras certamente está em outro lugar que não em seus ‘sentidos’.” E acredito que seja o caso de Alice. A arte também tem o poder de nos confundir, trazendo mais desconforto e dúvidas ao invés de respostas.
7 – Como você percebe o horror e o grotesco na obra original de Carroll?
Pra mim não há nada que evoca mais a percepção do horror e do grotesco do que o desconhecido e aquilo que parece profundamente familiar mas radicalmente estranho ao mesmo tempo. O encontro com o que é alheio e desconhecido, que por definição, é algo que escapa a tudo que sabemos e supomos controlar, tem o potencial de desestabilizar, desestruturar e nos desorganizar por completo, desafiando nossa razão e entendimento sobre o mundo. E lidar com o desconhecido e com as próprias sombras são as engrenagens motoras das obras de Lewis Carroll sobre Alice, e também é o que torna essas obras tão poderosas e especiais pra mim.
8 – Como você concilia os elementos sombrios e fantásticos com o nonsense e a atmosfera de sonho nas suas ilustrações de Alice?
Acredito que o principal elo que conciliou esses dois lados presentes nas obras foi a inserção de elementos do grotesco de forma sombria e lúdica. O grotesco como uma categoria estética que lida com ambiguidades como o bizarro e o cômico, o estranho e o familiar, o repulsivo e fascinante, foi uma influência importante para a exploração de elementos que enfatizassem essas ambiguidades, ou relação entre esses dois lados. Então, com forte inspiração na Gestalt e no Expressionismo alemão, me aventurei através das distorções dos espaços, nas extravagâncias físicas, nos comportamentos ambíguos que gerassem receio, mas também algum nível de simpatia, evidenciando os estados psicológicos das personagens.
9 – E sobre os deliciosos detalhes mórbidos que você inseriu no sonho de Alice? Tem algo curioso a dizer sobre eles?
No início eu fiquei um pouco intimidada com o desafio, enquanto eu não fazia ideia do que criar, mas a partir do momento que confiei em fazer o que eu sei fazer, comecei a me divertir horrores no processo criativo, e essa parte foi a coisa mais deliciosa e divertida durante a criação. Gosto da sensação de estranhamento, como por exemplo, na fotografia de Lewis Carrolll sorrindo; um sorriso é algo que pode parecer muito estranho dependendo do contexto e eu não pude parar de pensar no homem nu que sorri num canto escuro da casa nas cenas finais do filme “Hereditário”. Achei muito divertido interagir com a história escondendo nas ilustrações alguns dos itens que vivem sendo procurados em Alice, como luvas e tortinhas, interferindo levemente sobre onde elas podem ter ido parar. Também me diverti conectando imagens diferentes de forma espontânea através da livre associação, como árvores que parecem ter mãos com garras, tortinhas com partes humanas, gêmeos que se parecem com o Nosferatu, ou “o homem que ri” com seus chapéus empilhados, como alguns exemplos que posso citar.
10 – Quais personagens ou passagens das obras mais te atraem e por quê?
É difícil elencar meus preferidos, mas acredito que a materialidade mais pungente das obras pra mim estejam na profundidade existente em vários diálogos e monólogos da Alice. Eu amo os momentos de crise de identidade e de senso de orientação que ela passa frequentemente, e em como muitas cenas acabam inesperadamente, sem soluções ou explicações, como num sonho (e se for parar pra pensar, muitas vezes como ocorre na vida também ). É comovente acompanhar Alice nessa busca por respostas e no encontro com a completa falta delas. A um nível mais cômico, nunca vou superar a cena em que o gato aparece como uma aberração apenas com sua cabeça flutuando no jogo de críquete e a rainha manda que cortem sua cabeça.
11 – Em algum momento, alguma de suas ilustrações te surpreendeu e revelou algo que você não havia notado antes?
As ilustrações sempre me surpreendem no final. Isso ocorre porque embora eu parta de uma ideia inicial, há muitos insights e mudanças no caminho, e assim elas vão se transformando até chegar em um ponto em que eu simplesmente não faço ideia de como fui capaz de criá-las (risos). O processo de criação às vezes é caótico e ver o trabalho pronto é sempre surpreendente e recompensador!
Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho.
Illustrated by Caroline Murta.
Wish, 2024. ISBN 9786588218969.
"I have been enchanted by the nightmarish edition with illustrations by the Brazilian artist Caroline Murta to both Alices. Her surname, "Murta," closely resembles “morta / morte,” which means “dead / death” in Portuguese, a theme that seems to inhabit her macabre drawings. These are full of artistic and literary reveries, praising the shadows as a dive into the unknown of reality and ourselves. When I asked Murta – Who are you? – “Ah, that is the great enigma!” she replied. She defines herself as a creature who still hasn’t gotten used to the world and reality. She carries with her a persistent feeling of estrangement.
Professionally, she is an independent artist and illustrator, dedicated to exploring the darker side of things. Her artistic style is characterized mainly by high-contrast black and white, through which she enjoys exploring the dramatic potential of settings and characters, combining elements of horror, gothic and the grotesque. The figures in her work are often in a state of dread and melancholy. In this edition, a shocking pink color was invited to partake in the illustrations and the edges of the pages, creating emphatic effects, surprise and even subversion, disturbing logic and conventional expectations.
Murta’s main influences come from the Victorian Gothic imagination, the Art Nouveau aesthetic, and Expressionism, though her work is not limited to these. One could describe her thematic obsession with death and mourning, a theme that has marked her life. However, the artist understands death within a broader spectrum, one that speaks of encounters with the “other,” the unknown, and the unfolding of those contacts. It is both a tribute to shadows and a homage to moments of identity crisis and loss of direction, which she frequently experiences, as happen to Alice."
continues in Knight Letter, the magazine of Lewis Carroll Society of North America.
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