As histórias
precisavam ser contadas onde os adultos não pudessem ouvir.
Clarissa Estes Pinkola
Era uma tarde de verão em Oxford na Inglaterra e o grupo
passeava de barco pelo rio Ísis. As nuvens sobre as águas espelhadas e
cristalinas fluíam lentamente. O grupo era formado pelos reverendos Charles
Dodgson e Duckworth, Alice Liddell e suas irmãs, Edith e Lorina, três Ondinas
dos sonhos da infância. O som dos remos na água se misturava com as risadas das
crianças e embalavam a imaginação. Em passeios como esse, o reservado e
conservador professor de matemática, vivia uma mágica metamorfose e se
transformava em Lewis Carroll, que contava histórias mirabolantes e engraçadas
que levavam os viajantes a mundos maravilhosos. Era uma sexta feira, 4 de julho
de 1862. Nesse dia a história parecia mais excitante do que as outras,
encantando as três meninas e mais tarde ela seria ampliada e entraria para a
história com o nome de “As aventuras de Alice no país das maravilhas”. “Carroll criava ali um caminho para um
reino onde a imaginação reinasse suprema”,
disse o biógrafo Morton Cohen.
Quando Lewis Carroll lançou Alice pela toca do coelho não
fazia ideia de como seriam as aventuras da menina num fluxo espontâneo e livre
da crítica, que subvertia a lógica e o rigor científico dos trabalhos
acadêmicos de Charles Dodgson, através do humor, dos paradoxos e do nonsense. E
as aventuras fluíram como as águas, seguindo associações que ele ia fazendo com
os animais que passeavam no campo, acontecimentos da vida cotidiana,
referências à lógica e à literatura, aos costumes da época, misturados aos fragmentos
de ideias que cruzavam a mente entre imagens poéticas e associações
inesperadas.
No Natal, dois anos depois do passeio de barco, Alice ganhou
um manuscrito ilustrado pelo próprio Carroll com a dedicatória “um presente de
Natal, para uma criança querida, em memória de um dia de verão”. A história se
chamava “Aventuras de Alice no Subterrâneo”. A menina tinha insistido muitas
vezes para que ele terminasse o manuscrito entregue num pequeno caderno de
couro azul com sua letra caprichada e seus desenhos de inspiração pré-rafaelita.
Versão Brasileira - saiba mais |
Naquele momento Carroll já preparava a nova versão das
aventuras de Alice para ser publicada. A história original estendida e
modificada com novos poemas, capítulos, personagens e invenções, mais complexa
e sofisticada, veio a público em Londres três anos após aquela “tarde dourada”.
Alice no País das Maravilhas, como
foi chamada, foi ilustrada por John Tenniel. Famoso ilustrador do Punch,
periódico vitoriano, suas ilustrações se tornaram clássicas e foram
consideradas inseparáveis da obra, mesmo que esse tenha sido um dos livros mais
ilustrados de todos os tempos.
No país das maravilhas Alice experimentava muitas mudanças
desde o momento que pulava na toca do coelho. Ela crescia e diminuía e se
esticava e se encolhia e se apertava e contorcia. Suas metamorfoses beiravam o
devir louco e o monstruoso: primeiro ela comia o cogumelo e mudava de forma,
encolhendo até a cabeça ir parar nos pés e em seguida seu pescoço se espichava
e se desdobrava como uma serpente.
Depois de ter se transformado tantas vezes naquele dia,
Alice não sabia mais quem era. Sua identidade vacilava no corpo a corpo com a
linguagem numa constante desmontagem da lógica, do bom senso e de tudo o que
ela tinha um dia aprendido na escola. Viajante de múltiplos eus, experimentava
as delícias e as ameaças de perder seu próprio nome. Transitava nos limiares e
nos interstícios do tornar-se e se perguntava “se não sou a mesma, então quem é
que eu sou?”.
Marcelo dust sobre ilustração de Lewis Carroll |
Entre cartas de amor, piqueniques, passeios de barco, risos,
jogos, fantasias, olhares enigmáticos, poses, fotografias, sonhos maravilhosos
que uniam Carroll e suas amiguinhas, a história da estória de Alice trás um
convite amoroso para a aventura e o mistério, para o afeto e o desejo. Somos
convidados a viajar por mundos impossíveis sem sair do lugar. Descobrimos
jardins encantados que nos habitam e nunca visitamos, captamos o murmúrio de
rios que nos atravessam, para criar outros caminhos para o tempo passar, dialogando
com imagens poéticas de Regina Machado.
De repente o barco começou a se mover contra a corrente e
Alice Liddell piscou os olhos para ver se estava sonhando. Ouvia a voz distante
da lagarta perguntando para Alice no subterrâneo da lógica e do bom senso: -
Quem é você? Nesse mesmo instante Alice admirou seu reflexo na água, quando um
feixe de luz se refletiu em seus olhos. De súbito teve uma visão de um
caleidoscópio de imagens, como um jogo fascinante de espelhos em que ela se
misturava com a Alice da estória, se transformando continuamente numa viagem
que atravessava sucessivas fronteiras no tempo e no espaço. A própria Alice da
estória começava suas aventuras nas margens do rio. Viu então que a
transformação da menina, que trocava o tempo todo de nome e de forma, Alice,
Mabel, Mariana, peão branco, telescópio, porco, monstro, flor e serpente,
continuava para além do livro e revelava uma identidade múltipla e metamórfica.
Nunca mergulhamos duas vezes no mesmo rio. Alice não é produto de seu tempo, Alice é uma maravilhosa máquina do tempo.
Polixeni Papappetrou
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio do Janeiro: Rocco, 1994, p. 17.
MACHADO, Regina. Acordais. São Paulo: DCL, 2004.
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