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9 de jun. de 2010

Os diálogos de Alice

Maria Zilda da Cunha e Nathália Xavier Thomáz



Fonte: revista SETE FIOS AQUI





E de que serve um livro sem figuras e nem diálogos? Esta frase é de Lewis Carroll, em uma de suas Alices. A questão que coloca reverbera em sua obra – dada a extrema iconicidade que ela atinge e a capacidade inusitada de estabelecimento de inúmeros diálogos. Instaurando-se na História e atravessando o ambiente tempório-espacial que o homem tece através da e na linguagem, Alice de Carroll acompanha tranquila e em múltiplos diálogos o advento de novas lógicas, novas geometrias, de novas fronteiras espaciais, novas físicas, novas matemáticas, de novas tecnologias e novas formas de relações sociais.

O hibridismo de gêneros e códigos, as referências e as contínuas operações intersemióticas, que permeiam a própria composição da obra, revelam uma mirada metalinguística, uma intensa consciência de linguagem, mesmo no interior do ato criativo. Esse processo ininterrupto de diálogo e de criação de signos – a que chamamos semiose – instalou-se na obra e faz de Alice no País das Maravilhas uns dos constructos ficcionais do século XIX com as mais fortes feições estéticas do século XXI.

Pensemos em uma personagem da qual não se tem a definição – Alice é menina, fada, bruxa, serpente, gigante, anã e monstro. Tudo e nada ao mesmo tempo. Relaciona-se com as mais inusitadas figuras e vivencia situações inesperadas. Alice é poder ser. Alice faz-se em formas de metamorfoses, modos de conexão, tal qual como um complexo diagrama da cadeia de pensamentos, e que ao fim e ao cabo, entre o risco e o rigor, em seu fluxo, enuncia e denuncia, por outro universo do absurdo, o absurdo de determinadas regras e valores instituídos por sistemas criados para regerem a vida do homem.



Lewis Carroll, em uma produção para crianças, arquiteta, a partir do nonsense e de paradoxos, caminhos labirínticos na justaposição de mundos entre o real e a fantasia. Os labirintos em Alice desestabilizam noções de tamanho, tempo, espaço e corrompem as molduras da lógica aristotélica; na esteira de Deleuze, destroem paradigmas esclerosados.

Alice é matéria literária, como diz Nelly Novaes Coelho, “mais ameaçadora que gratificante, ainda que procurem, ao longo do tempo, torná-la mais gratificante que no original”. Foi em 1862, durante um passeio no Tamisa, que o matemático e fotógrafo Charles Lutwidge Dodgson inventou uma história para entreter as filhas de um amigo, - Henry George Liddell, o deão do Chist Church – e utiliza como personagem principal uma das meninas. Em sua narrativa envolveu pessoas, situações e canções que permeavam a vida das crianças, tornando-as participantes ativas na tessitura da estória.

Três anos depois, cedendo a um pedido de Alice – a ouvinte-protagonista – Charles escreve a narrativa para dar a ela de presente. O autor acrescenta ao texto verbal algumas ilustrações feitas por ele mesmo e intitula a estória: Alice por baixo da terra ( Alice’s Adventures Underground).



Mais tarde, publicou o livro, com ilustrações de John Tenniel, com o novo título: Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland) e o faz sob o pseudônimo de Lewis Carroll.

Ao transferir-se para as folhas, que formaram o presente de Alice, e, posteriormente, o livro publicado em 1865, a estória sofreu um processo de adaptação, da narrativa oral para o suporte livresco. Portanto, pode-se dizer que foi o próprio Carroll quem começa o processo de releitura, revisitação, diálogo e reprodução de Alice no País das Maravilhas. Processo que foi realizado de maneira muito mais intensa com o advento da indústria cinematográfica.

Considerado “o primeiro grande nome da área do realismo maravilhoso dentro da literatura infantil moderna”, Alice exerceu uma enorme influência no imaginário da sociedade atual. Os ecos da obra continuam a reverberar nas produções culturais contemporâneas. Alice apresenta-se em inúmeras figuras e produtos, de desenho animado à personagem de vídeo-game, influenciando as criações midiáticas.



A primeira adaptação de Alice para o cinema foi realizada por Cecil Hepworth, em 1903, através de uma arte que começava a dar seus primeiros passos, sob grande influência do teatro e bastante vinculada a textos escritos para expressar as falas do cinema mudo. Depois deste primeiro trabalho, a estória foi revisitada muitas vezes pela linguagem cinematográfica.

Com certeza, a mais famosa até os dias de hoje é a animação de Walt Disney, lançada em 1951. Através da fantasia, do fantástico e do encantamento característicos das animações de Disney, a aventura de Alice ficou ainda mais popular. Algumas concessões foram feitas, muitas atenuações nos jogos propostos pelo nonsense do livro e, apesar de perder o caráter lúdico e crítico da obra original, a produção da Disney configura uma imagem que ainda ecoa no imaginário moderno.

Assistimos, este ano, a uma retomada do diálogo com Alice no País das Maravilhas pelos estúdios Walt Disney na produção de um filme dirigido por Tim Burton. A grande novidade é sua realização em 3D. A proposta desta versão – às vésperas do lançamento – é contar a estória de uma Alice adulta que retorna para o universo do nonsense carrolliano para ajudar as criaturas do País das Maravilhas.


O diálogo com a obra original já pode ser percebido pelas imagens divulgadas do filme. Observa-se a tentativa em criar uma estética tão desproporcional e absurda quanto à proposta pelo livro.

Como sabemos, o advento do 3D propõe uma nova forma de vivenciar a recepção cinematográfica, ao imergir o espectador na ação fílmica, altera formas de percepção visual. É possível que essa nova tecnologia possibilite outros modos de configurar os labirintos criados pela linguagem de Lewis Carroll, por meio de diagramas virtuais que operem de forma mais concreta e envolvente, no sentido de figurar, em outra materialidade, a arquitetura labiríntica da obra. No entanto, essas são apenas conjecturas; somente após a exibição e uma análise mais cuidadosa dessa nova versão, poderemos conferir se Alice ficou apenas mais gratificante ou se voltou a exercer seu papel ameaçador original.

Ao fim e ao cabo, é preciso lembrar: a estória de Alice estabeleceu diálogos com todas as formas de arte, num processo constante de atualização e revisitação. Há mais de 150 anos elementos dessa obra figuram no imaginário popular e falam à sociedade em que vivemos.

Maria Zilda da Cunha é professora doutora do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, na Área de Literatura Infantil e Juvenil da Universidade de São Paulo.

Nathália Xavier Thomáz é mestranda em Estudos Comparados de Literaturas da Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo.

Ilustrações: Baralho Copag

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