Segue a primeira versão do conto.
A versão definitiva será publicada pela editora Katarina Kartoneira em 2015… Aguardem.
Alice Mínima
por Wilson Bueno
A Adriana Peliano
Difícil manter-se ali, apesar de mínima. Mas tão mínima, que a olho nu, isto é, sem poderosas lentes, jamais seria vista. Nossa! Nossa! A nossa invisível Alice apoiava um dos fios de perna num lado do coração e outro no lado oposto de tal forma que desse modo conseguia se equilibrar, ainda que, muitas vezes, um dos mínimos pezinhos escorregasse e ela ficasse assim meio enviesada na ponta do coração do Ás de Copas. Trêmulas ambas as pernas – tanto a esquerda quanto a direita.
“Será que exagerei na poção mágica que faz a gente diminuir encontrada atrás da poltrona da casa do Coelho?” – pensava Alice, incapaz sequer de pedir socorro, pois a voz era um arremedo de voz, certamente ainda mais fina que a do Mosquito e talvez inaudível mesmo, pois quanto mais pedia socorro, parece que menos a ouviam. A Rainha, caso ouvisse semelhante voz-zumbido, ou ainda mais baixo que um zumbido, mandaria cortar a cabeça de Alice, mesmo que ninguém pudesse lhe enxergar o pescoço. E era fiando-se nisso que Alice gritava e gritava e quanto mais escorregava, mais as pernas tremiam. E ela ainda mais pedia por socorro.
Até que teve a idéia de sentar-se, como quem monta a cavalo, no vértice do coração da carta. Coisa que ligeiro fez, mesmo porque suas perninhas-de-linha não suportariam o desconforto da posição anterior, mais um minuto, e os minutos ali pareciam ser ainda mais breves que os minutos da vida aqui fora.
“Como poderei sair daqui – pensou Alice – se agora, de pequena passei a invisível?”
Mas aí é que se deu a aparição da Lagarta. Imaginem vocês, com uns óculos de lentes tão fantásticas e potentes que sugeriam os óculos de um escafandro, desses que mergulham no fundo dos Oceanos para catar minúsculas pedrinhas destinadas à coleção de gemas raras do Museu Britânico.
E lá vinha ela, a Lagarta, sempre devagar, e sempre cansada, meio que se arrastando, e andou a carta toda até chegar bem próxima do coração do Ás de Copas. Meneou a cabeça muitas vezes e de repente soltou um “ah!” de espanto e perplexidade:
– Não posso acreditar no que minhas lentes vêem! – exclamou a Lagarta extremamente surpresa. – Você, Alice?! Mas como pode ter ficado menor que um cisco? Menor que um grão de poeira?
– Pois é, Dona Lagarta, acho que abusei da poção mágica de diminuir gente que encontrei atrás da poltrona do Gato. Também estava tão docinha...
– Sorte a sua, Alice! – ralhou a Lagarta, num misto de impaciência e regozijo. – Não tivesse emprestado esses óculos- lunetas dos irmãos Tledle, nunca sei se do Tledledee ou se do Tledledum, pois são tão parecidos, jamais a encontraria, menina! Jamais!
– E por que essas lentes, Dona Lagarta? Só para me procurar? – perguntou, chorosa, a mínima Alice, agora mais calma, mas ainda enganchada na ponta do coração do Ás de Copas e com muito medo de cair dali. Por mínima, dada a altura, o tombo seria imenso, ou mesmo fatal.
– Claro que não, Alice! Nem sabia... Ando atrás de uma Pulga que roubou 500 libras do Unicórnio. E te confesso que de longe pensei que você fosse a própria Pulga Larápia.
– Graças a Deus! – benzeu-se Alice. E logo se corrigiu pois com aquela expressão poderia parecer à Lagarta que estava aprovando o feio ato da Pulga. E logo este de roubar o Unicórnio, aquele animal tão gracioso que fizera um acordo com ela, Alice, aquele acordo que se ela acreditasse nele, ele passaria a acreditar nela e assim, um acreditando no outro, ambos passariam a se ver sob a mais veraz realidade.
Mas tudo indicou que a Lagarta entendeu de pronto o “Graças a Deus!” de Alice. E essa estava tão pálida e trêmula em sua minimez mais mínima, que só as lentes da Lagarta alcançavam perceber. Além disso, a Lagarta, sabemos, era muito compreensiva, ademais de generosa.
E foi então que Alice arriscou perguntar o que é que ela vira com tão poderosas lentes, até ali, na caçada atrás da Pulga Larápia:
– Dona Lagarta o que a senhora já viu em sua caminhada? – uma curiosa Alicimínima, com voz abaixo da linha do silêncio, enganchada na ponta do coração da carta, quis saber.
– Nem te conto, Alice. Um exército de gérmens ainda há pouco vi subindo uma haste de capim. E incrível foi quando três grandes pulgões, estes visíveis sem as lentes, atacaram os gérmens. Uma guerra sangrenta, mas, quieta em meu canto, assisti à vitória dos pulgões. Parentes da Pulga Larápia, sem dúvida, mas não podemos incriminar alguém só porque guarda parentesco com quem não tem caráter, não é mesmo?
– Sim, siiiimmmmmmmmmmmm – zuniu Alicimínima, temerosa de ficar ainda menor e sumir até mesmo da visão das poderosas lentes da Lagarta.
– Dona Lagarta, estou com medo... Medo de ficar ainda menor...
– Se você ficar ainda menor, não há razão para medo – corrigiu a Lagarta.
– É mesmo – entendeu logo nossa Alicimínima. – Se eu for ficando menor, e menor, e menor ainda, aí eu desapareço e deixo de existir e eu não existindo não poderei ter medo, não é mesmo?
– Justo, Alice. Justo – aprovou a Lagarta. E você então ficaria tão mínima, mas tão mínima, que deixando de existir, não seria nem mais sequer Alice.
– Mas será que eu não ficaria sendo, assim mesmo, uma Alicenada alicimínima, e continuaria com medo? Será que o que é nada não tem medo de nada ? De nadinha mesmo?
Dona Lagarta não respondeu mas foi logo acalmando Alice:
– Olha, continua aí sentadinha no vértice do coração de Copas. Segura firmizíssima com as mãozinhas, como quem segura num balancim, para não cair, que eu vou ver se encontro a outra poção, a de crescer, que, sei, o Coelho guarda, bem escondida, em sua casa, numa velha cômoda...
Uma chorosinhinhha Alicimínimazinhainha assentiu com a invisivelzinha cabecinhinha que ali aguardaria a Lagarta.
Não demorou muito, retornou a Lagarta com o vidro de poção de crescer encontrado, bem escondido, dentro de uma gaveta da cômoda, na casa do Coelho. De pequeníssima bolsa retirou com a boca um conta-gotas tão microscópico que só os olhos-lunetas da Lagarta conseguiam enxergar. E, com um sopro, o pôs nas mãos da tiquititíssima Alice.
– Abra sua bocazinhazinha Alicinha – pediu Dona Lagarta. E, com extremo cuidado e paciência, como só as lagartas são capazes, com os óculos de poderosas lentes, que nunca foram tão úteis, ajudou Alice a pingar as partículas-gotículas da poção na linguazinhazinha de nossa Aliceminimazinha.
E esta foi de novo crescendo, crescendo, e quando chegou no tamanho suficiente para saltar da ponta do coração, ainda assim teve que se servir do micro conta-gotículas soprado da boca da Lagarta. Mas logo alcançou escorregar, por si própria, do Ás de Copas e aí, agora a gotículasículas medidas, continuou a aspirar boquita adentro a poção mágica. Desta feita com extremo cuidado. Poderia, quem sabe?, virar uma dessas gigantonas que vão por aí amassando com seus grandes pés casas, árvores e até afundando barcos em alto mar. Deus nos livre a falta de medida, conjeturou a ainda desmedida Alice.
Quando ficou bem maior que a Lagarta, percebeu que algo lhe subia pela perna. E não é que era a Pulga Larápia!!! Num movimento rápido e certeiro, como só Alice era capaz, grudou entre o polegar e o indicador a bandida, disposta a entregá-la, viva, à Lagarta. Esperneando muito, a Pulga Larápia, que além de larápia era muito ágil, ou por isso mesmo, escapou, contudo, de entre os dedos de Alice e sumiu na Floresta a gigantescos saltos, a foragida.
A Lagarta ficou olhando, olhando, e decidiu retirar os incômodos óculos de poderosas lentes. Aquela Pulga jamais ninguém encontraria – concluiu.
Mas aí Alice já estava em seu tamanho quase normal e tomando a Lagarta com cuidado na palma da mão, para que não se cansasse no caminho, a levou até o Unicórnio. E junto ao Unicórnio testemunhou todo o ocorrido.
março / 2010
O conto Alice Mínima foi criado especialmente para o evento "Um dia, Alice".
"Um dia, Alice", o evento que movimentou das 16 às 20 hs, o último domingo paulistano, 11 de abril, lotando o auditório do Centro Cultural Brasileiro Britânico, em São Paulo, foi um sucesso absoluto, em minha opinião. Desses que raramente acontecem no Brasil. Basta destacar que para um auditório de 200 lugares, havia mais de 400 presenças - sobretudo de jovens, que superlotaram as dependências da Cultural Inglesa, em Pinheiros.
Para mim, que conduzi o bate-papo "O sentido do nonsense", foi alta honra participar do autêntico acontecimento cultural que inaugurou, em altíssimo estilo, as iniciativas - das quais esperamos muitas outras, obviamente -, da Sociedade Lewis Carroll do Brasil, brilhantemente conduzida por este misto de "fada" e artista de alta estirpe que é Adriana Peliano, presidente dessa entidade que veio para ficar, no Brasil. O evento de 11 de abril diz mais do que qualquer depoimento que se faça sobre ele.
Para mim, que conduzi o bate-papo "O sentido do nonsense", foi alta honra participar do autêntico acontecimento cultural que inaugurou, em altíssimo estilo, as iniciativas - das quais esperamos muitas outras, obviamente -, da Sociedade Lewis Carroll do Brasil, brilhantemente conduzida por este misto de "fada" e artista de alta estirpe que é Adriana Peliano, presidente dessa entidade que veio para ficar, no Brasil. O evento de 11 de abril diz mais do que qualquer depoimento que se faça sobre ele.
Entrevista com o escritor Wilson Bueno para o programa Entrelinhas da TV cultura.
Fotos: João Batista Santana
Fotos: João Batista Santana
O sentido do nonsense
Quem é Wilson Bueno?
Wilson Bueno, um dos mais expressivos escritores brasileiros contemporâneos, é autor de inúmeros títulos, em várias vertentes e gêneros literários. Autor da novela Mar Paraguayo (editora Iluminuras, São Paulo), publicada na Argentina, Chile, México, Cuba, Estados Unidos, e objeto de teses e seminários num arco que vai da USP à Universidade do Cabo, passando por Berkeley e Sorbonne, é considerada, por sua inventiva construção ( portunhol e guarani) um clássico contemporâneo.
Prodigioso fabulista, estrito senso, é igualmente notável e dona de extensa fortuna crítica, o que chama de sua “trilogia zoofílica” constituída por Manual de Zoofilia (Noa Noa), Jardim Zoológico (Iluminuras) e Cachorros do Céu (editora Planeta, finalista do Prêmio Portugal Telecom/2006).
Ao lado de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Josely Vianna Baptista é um dos únicos autores vivos da literatura brasileira a integrar a recém-lançada, nos Estados Unidos, The Oxford Book of Latin American Poetry ( Oxford Press University, 706 págs.) considerado pelo “New York Times” a mais importante antologia do gênero até hoje publicada em língua inglesa.
(J. B. V. S.)
Wilson Bueno, um dos mais expressivos escritores brasileiros contemporâneos, é autor de inúmeros títulos, em várias vertentes e gêneros literários. Autor da novela Mar Paraguayo (editora Iluminuras, São Paulo), publicada na Argentina, Chile, México, Cuba, Estados Unidos, e objeto de teses e seminários num arco que vai da USP à Universidade do Cabo, passando por Berkeley e Sorbonne, é considerada, por sua inventiva construção ( portunhol e guarani) um clássico contemporâneo.
Prodigioso fabulista, estrito senso, é igualmente notável e dona de extensa fortuna crítica, o que chama de sua “trilogia zoofílica” constituída por Manual de Zoofilia (Noa Noa), Jardim Zoológico (Iluminuras) e Cachorros do Céu (editora Planeta, finalista do Prêmio Portugal Telecom/2006).
Ao lado de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Josely Vianna Baptista é um dos únicos autores vivos da literatura brasileira a integrar a recém-lançada, nos Estados Unidos, The Oxford Book of Latin American Poetry ( Oxford Press University, 706 págs.) considerado pelo “New York Times” a mais importante antologia do gênero até hoje publicada em língua inglesa.
(J. B. V. S.)
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